sexta-feira, 6 de março de 2020

O PRÍNCIPE QUE BOCEJAVA, DE ANA MARIA MACHADO

O PRINCIPE QUE BOCEJAVA
ANA MARIA MACHADO

Era uma vez um príncipe muito bem educado, que tinha se preparado toda a vida para ser rei um dia.
 Desde pequenino, aprendeu a não brincar de esconder atrás das cortinas do salão do palácio, a não patinar nem andar de skate pelos corredores, a não descer pelo corrimão da escadaria. Também lhe ensinaram a se portar á mesa com boas maneiras, a ser gentil com as pessoas, a ficar horas em pé sem se mexer, assistindo quietinho aos desfiles e paradas.
 Teve professores de dança e de ginástica, de equitação e de golfe.  Aulas de economia e de política, de direito e de línguas. Aprendeu toda a história de seu País e toda a geografia do mundo. As mais completas bibliotecas do reino não tinham segredos para ele. Os melhores professores e conselheiros foram seus preceptores. Seus computadores tinham sempre os programas de última geração. Estava sempre lendo seus autores preferidos, pronto para discutir personagens e situações. Tinha argumentos para defender suas opiniões em qualquer discussão. Sabia de cor vários poemas lindos.
Quando cresceu, ficou um rapaz encantador. Podia ser considerado um verdadeiro príncipe encantado ­­- para quem ainda acreditasse nessas coisas. Todas as moças suspiravam por ele, sonhavam com ele, recortavam suas fotos que saíam nas revistas. 
Então chegou a hora de resolver com quem ia casar.
Deram um grande baile, daqueles de escolher noiva. Vieram princesas encantadoras, de todo canto. O príncipe dançou com todas e foi muito gentil.  Mas assim que começou a conversar com a primeira, aconteceu algo muito desagradável.
- Aaaaaaaahhh!
Por mais que ele tentasse disfarçar, quem estava por perto viu.
O príncipe estava bocejando!
“Mas que mal educado!”, pensou alguém.
- O príncipe deve estar muito cansado comentou um assessor.
- Essa princesa deve ser uma chata – também houve quem dissesse.
E trataram de levar a moça dali e chamar outra para conversar com o príncipe. Não adiantou nada. Em cinco minutos, ele já estava bocejando:
- Aaaaaaaahhh!
Por mais que o príncipe tentasse, não conseguia segurar. Fazia força, fechava a boca, mas os músculos não obedeciam, parecia que o ar queria sair pelo nariz e pelos ouvidos. Vinha um sono enorme que dava vontade de bocejar.    O máximo que ele podia fazer era esconder a boca com a mão. Mas os olhos se fechavam e a corte toda via que o príncipe estava bocejando.
Vinha uma princesa atrás da outra para conversar com ele. Com todas acontecia o mesmo. Elas se aborreciam, os pais delas se zangavam, todo mundo comentava.
No dia seguinte, estava em todos os jornais:
PRÍNCIPE OFENDE PRINCESAS ESTRANGEIRAS
Havia fotos do príncipe bocejando e artigos falando mal dele, cheios de expressões complicadas, como “incidente diplomático”. Uma nota do palácio explicou que ele cancelara toda a agenda oficial e ia descansar por alguns dias.
Daí a algumas semanas, deram outra festa de escolher noiva. Como algumas princesas não quiseram vir, também foram convidadas várias atrizes, cantoras e modelos. Cada moça mais linda que a outra. O príncipe estava evidentemente entusiasmado. Dançou sem parar e escolheu algumas daquelas belezas para depois conhecer melhor – em pequenos jantares, compartilhando seu camarote em estréias de gala no teatro, ou passando fins de semana em castelos de amigos. Mas nesses segundos encontros acontecia a mesma coisa. Depois de poucos minutos de conversa, vinha aquela vontade incontrolável e...
- Aaaaaaaahhh!
O príncipe bocejava!
Só podia estar doente. Talvez com a doença do sono.
Os médicos então sugeriram:
- Uma viagem! Talvez assim Vossa Alteza conheça outras princesas...
Bastou essa ideia e ele começou de novo:
- Aaaaaaahhh!
É que nem podia ouvir falar em princesa que se lembrava das conversas que tinha ouvido. De todas aquelas moças falando de roupas e do cabeleireiro e do namorado de uma amiga e da irmã da vizinha e do último lançamento da butique e do regime que a prima da cunhada tinha feito e da festa do duque e do número de calorias do empadão e do chapéu novo da marquesa e do chapéu velho da baronesa e do corte de cabelo esquisito da condessa e da...
- Aaaaaaaahhh!
E em seguida um grito:
- Chega! Não quero mais conhecer princesa nenhuma! Vou viajar, sim... Mas do meu jeito.
O jeito dele era se disfarçar, para ninguém reconhecer nem chegar perto com aquelas conversas chatas. E como suas fotos estavam em todo canto, tratou de ficar bem diferente. Cortou e pintou o cabelo, pôs brinco e óculos escuros, se vestiu de um jeito bem moderno, botou uma mochila nas costas. Quem visse achava que ele estava indo para algum festival de rock.
Primeiro, saiu de moto pelas estradas. Viu uma porção de lugares bonitos, sentindo o vento e curtindo a liberdade. Depois, quando cansou de estar sozinho, resolveu viajar de trem.
Logo no primeiro trecho, o trem estava meio cheio e não havia lugar perto da janela. Sentada junto á vidraça, uma moça nem aproveitava para ver a paisagem porque estava distraída lendo um livro.
O príncipe ficou esperando uma oportunidade para propor uma troca de lugares. A moça continuava mergulhada na leitura. Ás vezes arregalava os olhos. Outras vezes sorria. Devia ser um livro interessantíssimo. Ele morria de curiosidade para ver o título. Até que não agüentou mais e perguntou. Quando ela respondeu, ele sorriu:
- Eu adoro esse autor, mas não conheço esse livro.
- É que acaba de sair... A história se passa no mesmo lugar que aquele outro que...
Num instante estavam conversando. Falando de personagens que conheciam como se fosse gente de verdade. Tinham lido alguns livros que eram os mesmos. Mas cada um tinha também suas leituras diferentes. Então recomedavam, contavam, comparavam. Lembravam trechos de que gostavam, criticavam o que não gostavam.
- Para onde você está indo? – perguntou ele depois de quatro horas de viagem e de conversa, sem bocejar nem uma vez.
Quando ela respondeu, ele mentiu e disse que também ia para lá. Só para encontrar de novo com a moça no outro dia e continuar a conversa. E quando descobriu que daí a três dias ela seguia viagem para outro lugar, o príncipe exclamou:
- Mas que coincidência! Eu também...
Continuaram viajando juntos por muitas semanas. Conversavam o tempo todo, o assunto nunca acabava, sempre tinham coisas interessantes para contar.
Não tinham roteiro fixo. De vez em quando um sugeria uma cidade:
- Vamos saltar na próxima estação? Viu o nome? É lá que fica aquela abadia que...
- Claro! Eu também li esse romance. Vamos, sim!
Depois o outro lembrava:
- Vi no mapa que a gente está bem pertinho da aldeia onde nasceu aquele poeta de que você estava falando outro dia... podíamos ir ver a casa dele.
E incluíam mais uma visita em seu caminho. Estavam adorando viajar juntos. E ele nem bocejava.
Mas um dia começou a pensar: “Que mistério era aquele? Como é que aquela moça podia ir para onde quisesse, daquele jeito? Não tinha família? Não morava em lugar nenhum? De onde vinha? Para onde ia?” Resolveu perguntar.
Ela ficou meio envergonhada para responder:
- Bom, eu moro mesmo é num lugar meio longe daqui.
E disse justamente o nome do reino dele. Depois continuou a explicação:
- Só estou podendo viajar porque ganhei um prêmio. O segundo lugar num concurso. Se fosse o primeiro, ganhava muito dinheiro, uma casa mobiliada, até com livros na estante e um carro na garagem. Mas como foi o segundo, ganhei um passe de trem válido por seis meses, para onde eu quiser. E uma caixa de livros. Mas eu já tinha lido alguns, da biblioteca...
- Então a gente troca. Você me passa os que já leu, e eu lhe dou só livros que você não tiver lido. Combinado?
Combinaram. Ainda mais porque eram da mesma cidade, ia ser fácil fazer a troca... E ele ficou convencido de que, em poucos meses, quando acabasse o passe dela, ele também ia voltar para casa.
- E você? Por que está viajando?
            Meio sem jeito, ele resolveu que ia contar seu segredo e dizer a verdade. Tinha vontade de ficar o resto da vida ao lado dela, conversando sem parar. Não podia mentir:
            - Bom, de verdade, eu sou príncipe...
            Ela riu, batendo palmas:
            - Que maravilha! Mais uma coincidência... Eu também sou princesa...
            - Princesa?
            - É... Tirei o segundo lugar no concurso de carinha da uva na Festa da Colheita, eu não lhe disse?
            Não, não tinha dito. Não exatamente isso. Mas não fazia mal.
            Daí a alguns meses a Princesa que Lia e o Príncipe que Não Bocejava Mais voltaram para casa e se casaram. Não sei se viveram felizes para sempre. Mas por muito e muitos anos, até onde a memória alcança, tiveram assunto para conversar e se divertir. Leram muito. E às vezes, quando bocejavam, já sabiam porque era: estavam com sono e era hora de ir para cama.

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