Vocês
se lembram?
Já
contei a estória do Pássaro Encantado de muitas cores, que amava a menina....
Mas
sempre chegava a hora em que ele dizia:
“É
preciso partir, ficar longe por muito tempo, para que a saudade cresça, e
dentro dela o encanto!”....
E
ele voava....
A
menina ficava, e chorava.
Até
que não mais aguentou a dor da saudade e prendeu o Pássaro numa gaiola de
prata, para que nunca mais a deixasse.
Ele
ficou, mas murchou. Seus olhos entristeceram e suas cores se apagaram.
Acabou
também a saudade, e o encanto se foi.
A
menina entendeu, então, que é preferível a dor da saudade encantada à tristeza
de uma presença encarcerada. E abriu a porta da gaiola.
O
Pássaro voou para muito longe até que a saudade voltasse a crescer.
Um
dia ele voltou. Mas estava diferente.Triste
-
Você mudou - disse a Menina!
-
Eu sei, ele respondeu. - Perdi a alegria. Não mais tenho vontade de voar!
-
Como foi que isto aconteceu? - perguntou a menina.
-
Estou velho. Não sou como era...ele respondeu.
-
Quem lhe contou isto?
-
O espelho.
Com
estas palavras, o Pássaro tirou de dentro de suas penas um espelho de ouro e
começou a contemplar o seu rosto.
-
Não me lembro deste espelho - disse a menina
-
Foi presente de alguém! Deixado à minha porta - explicou o Pássaro.
“Como
seu Pássaro mudara!”, a Menina pensou.
Ela
nunca o havia visto se olhando num espelho.
Seus
olhos estavam sempre cheios de mundos, de montanhas e campos nevados, florestas
e mares...
Tão
cheios de mundos, que não havia neles lugar para sua própria imagem.
Mas
agora era como se os mundos não mais existissem.
Os
olhos do Pássaro estavam cheios do seu próprio reflexo.
A
menina percebeu que o seu Pássaro fora enfeitiçado.
Com
certeza alguém, com inveja, como a madrasta da Branca de Neve.
E
que instrumento mais terrível para o feitiço que um espelho?
Mais
terrível que as gaiolas.
De
dentro das gaiolas todos querem sair. Mas dentro dos espelhos todos querem
ficar.
A
menina se entristeceu...
E
jurou que tudo faria pra quebrar qualquer feitiço.
Mas
de feitiços ela nada entendia.
Procurou
então os conselhos de um velho mago, que lhe revelou o segredo do poder de
todos os bruxedos.
-
Uma pessoa fica enfeitiçada quando se torna incapaz de amar.
E,
para isto, não existe nada mais forte que um espelho.
O
espelho faz com que as pessoas só se vejam a si mesmas.
E
quem só vê o próprio reflexo não consegue amar.
Adoece
e morre.
Narciso
morreu assim, enfeitiçado por sua própria beleza, refletida na água da fonte.
E
foi a beleza da madrasta da Branca de Neve, refletida no espelho que a
transformou de mulher linda em bruxa horrenda.
-
Contra o feitiço do espelho existe um só remédio: é preciso redescobrir o amor.
Ficar
de novo apaixonado.
Somente
o amor tem poder suficiente para arrancar as pessoas de dentro da armadilha do espelho.
Mas não há receitas...
Somente
quem ama a pessoa enfeitiçada pode salvá-la....
A
menina pensou que, talvez , as coisas que o Pássaro sempre amara, no passado teriam
o poder para fazê-lo amar agora, no presente
E
se lembrou da alegria que ele tinha nas frutas do pomar.
Trouxe-lhe
então as mais queridas:caquis, pitangas, mangas, romãs, jabuticabas, mexericas,
aquelas que guardavam as memórias de infância escondida em sua carne.
Mas
o Pássaro se recusou a comer.
Não
tinha fome de frutas. Sua boca estava amortecida. Como se não existisse.
Só
tinha olhos, olhos que fitavam o espelho em busca de uma beleza perdida,
ausente.
A
menina não se deu por vencida. Resolveu tentar a sedução dos perfumes.
Os
perfumes são sutis: penetram fundo, nas profundezas da alma.
Lembrou-se
de que o Pássaro amava o cheiro bom das plantas.
Foi
então ao jardim e ali colheu flores de jasmim, de magnólia, de madressilva, da
flor-do-imperador e as folhas de hortelã, manjericão, rosmaninho de alecrim...
“Ah!”,
ela pensava, “não existe bruxedo que resista aos perfumes.
Porque
eles entram na alma, aonde nem mesmo os pensamentos e os olhares enfeitiçantes
conseguem chegar...”
Mas
o Pássaro também se tornara incapaz de sentir os perfumes.
Ele
era só olhos em busca de uma imagem perdida....
-
Minha tristeza mora num lugar mais fundo que o lugar dos perfumes, ele explicou
à Menina.
-Tenho...saudades
de mim mesmo, daquilo que já fui. Procuro, no espelho,um rosto passado, um
tempo perdido...
E
a tristeza e por isto, porque sei que não é possível reencontrar!
A
Menina pensou, então, que a ciência poderia ajudar.
Procurou
médicos de perto e de longe, e voltou para casa carregada de pílulas e
injeções(química), cheias de alegria.
Mas
os milagres eram curtos e a alegria se ia tão depressa quanto chegara.
Mas
a doença não é do corpo - disse o Pássaro.
-
Ela mora na alma. Se eu não vôo,não é porque minhas asas ficaram fracas.
Elas
ficaram fracas porque não desejo mais voar.
E
quando o desejo se vai, vai-se também a alegria, e o corpo envelhece!
A
menina, chorando, lhe pergunta:
-
Mas não existe remédio algum para a tristeza?
-
Sei que existe - disse o Pássaro, - Mas num lugar muito longe (ou será num
lugar muito perto?), que não sei onde é.
Mas
para chegar lá, há de se saber voar.
Você
já voou? - o Pássaro perguntou a menina
-
Voar , eu? Sou uma menina, não tenho asas...
-
Mas você já tem asas - ele afirmou. - E nem se quer percebeu...
É
que as asas das meninas, diferente das asas das borboletas e dos pássaros, não
são vistas com os olhos. São invisíveis...Só podem ser vistas com os olhos da
imaginação!
A
menina nunca havia pensado nisto, que um dia ela teria asas.
Parecia
tão absurdo! E, de repente, se lembrou...
...
Um presente muitos anos atrás, que seu Pássaro lhe trouxera de uma de suas
viagens: um pôster colorido, uma menina, com asas de borboleta, que leve voava
sobre a superfície de um lago.
E
ela lhe perguntara, espantada:
-
Uma menina com asas?
E
o Pássaro respondera:
-
Mas você nunca percebeu as asinhas que já começam a crescer em suas costas?
E
os dois riram de felicidade.
Pois
é: chegara o momento em que teria que começar a voar.
-
A quem devo procurar? – ela perguntou.
-
Procure aqueles que sabem voar: os poetas.
Eles
têm asas mágicas, feitas com palavras e se chamam poemas!...
E
a Menina partiu em busca do remédio que faz retornar a alegria à alma, a fim de
dar leveza ao corpo...
Encontrou
um poeta e fez seu pedido.
O
poeta a olhou com um olhar de bondade e lhe disse:
-
Não posso atender seu pedido. Também eu estou procurando.
Sabe
por que sou poeta?
Porque
sinto em tudo só uma pitada de alegria.
Mas
ela se vai tão depressa, misturada à tristeza.
Passa
depressa como o Vento... Até um poeta já disse:
Leve,
muito leve,
Um
Vento passa ,
E
vai-se sempre muito leve!...
Assim
é a alegria....
Nós
a cantamos, quando ela aparece.
Bem
que gostaríamos de sermos mágicos para chamá-la e distribuí-las pelo mundo...
Mas
não podemos ajudá-la!
Quem
sabe os monges...
Eles
têm asas de luz...
Consta
que descobriram o segredo da alegria!...
A
Menina amou o poeta e até quis ficar com ele mais tempo.
Mas
lembrou-se de seu Pássaro... E continuou.
Voou
alto, muito alto, para o cume de uma montanha deserta e nevada, onde monges se
dedicavam à busca de Deus.
-
Sim, Menina, Deus é a suprema alegria.
Por
vezes a sentimos. Mas passa rápido, muito rápido.
Como
o sol que se pões.
E
nada há que possa detê-la.
Passa
rápido como a beleza do crepúsculo.
Sabe
porque fizemos o nosso mosteiro tão alto?
Para
que a alegria do pôr-do-sol demore um pouco mais.
Queremos
a beleza da luz que se vai, onde mora Deus, onde mora a alegria. Venha
comigo!...
E
tomando a menina pela mão levou-a até um templo, lugar sagrado...
E
a luz do crepúsculo filtrava-se pelos vitrais de muitas cores...
-
Veja como entra pelos vitrais. Como é suave esta alegria.
Mas
logo se vai e a noite chega. Com a noite vem a tristeza e o medo...
Felizmente,
com o nascer do sol, ela volta.
O
choro dura uma noite toda, mas a alegria vem pela manhã...
Vivemos
assim, entre a tristeza que vem e a alegria que foge...
Não,
Menina, não conseguimos prender a alegria.
Só
conseguimos aprender a cantar quando ela vem...
Quem
sabe os revolucionários, que desejam construir o paraíso sobre a terra.
Eles
têm asas de fogo!...
A
Menina amou aqueles homens e achou lindo o que estavam fazendo, celebrando a
luz que vem e que vai... Quis ficar.
Mas
havia um Pássaro triste, lá embaixo, que esperava por ela.
Abriu
suas asas e se foi, em busca dos revolucionários.
Encontrou-os
nas montanhas. Moravam nas alturas, não porque quisessem subir para as estrelas
como os monges, mas porque queriam descer para os vales.
Amavam
a terra e por ela dariam suas vidas.
-
Como gostaria de ter a resposta para sua pergunta, Menina – disse um deles, de
rosto enigmático, estranha combinação de dureza e ternura. – Sei o que tira a
alegria.
Os
corpos famintos, perseguidos, sofridos, dos pobres e fracos – ah!,como é
difícil que se alegrem! A fome, a dor, a doença, as injustiças são todas
inimigas da alegria.
E
para ela queremos preparar o caminho: quebrar as espadas, queimar as botas,
abrir as prisões, distribuir as terras, perdoar as dívidas... Isto nós sabemos
fazer.
Mas
alegria é coisa mágica que vem de dentro, não de fora.
O
que fazemos é preparar a terra para que ela possa vir das funduras de onde
mora.
Ela
mora no lugar dos sonhos, aonde os nossos não podem ir!
Para
ter alegria é preciso sonhar. Mas este segredo nós não sabemos.
Talvez
os intérpretes de sonhos... Eles têm asas de luar!...
A
Menina amou o rosto duro e terno daquele homem, admirou sua coragem, mas sentiu
uma discreta tristeza em sua fala.
Também
ele não havia encontrado a alegria. Abriu suas asas...
Já
estava ficando cansada. E partiu em busca dos intérpretes dos sonhos.
Sonhos:
como são estranhos... Aparecem à noite, quando dormimos. Vêm de muito fundo, lá
onde moram nossos desejos adormecidos. Eles são entidades tímidas. Só aparecem
com o brilho do luar...
-
Ah! Menina, você nos pergunta sobre o segredo da alegria.
Sabemos
que é nos sonhos que ela se realiza, como quando se espera a volta da pessoa
amada. Antes é a saudade, o vazio.
Depois
o abraço.
Alegria
é isso: poder abraçar o que se ama.
Mas
é preciso primeiro saber, primeiro, o nome do que se ama.
E
é este nome que aparece, disfarçado, nos sonhos. Conte-nos os sonhos do seu
Pássaro!
Mas
o Pássaro havia parado de sonhar.
-
Então não podemos ajudá-la. Mas sabemos que os que sonham são os apaixonados.
Eles
têm asas feitas de saudade. Quem sabe eles lhe dirão o segredo!...
E
a Menina partiu, triste. Já estava cansada, longe, muito longe de seu amado
Pássaro...
E
pensou se não seria melhor estar com ele, em sua tristeza.
E
dentro dela a saudade foi crescendo, doendo, um desejo enorme de voltar...
Muito
longe dali, o Pássaro se olhava no espelho e chorava os sinais do tempo
gravados no seu rosto e a única coisa que via era sua própria imagem.
De
repente, entretanto, algo passou bem no fundo da sua alma, como se fosse um
vento leve, bem leve; ou um raio de sol crepuscular; uma pequena chama de
fogueira no frio das montanhas; um sonho bonito, em meio à noite...
E
ele se lembrou da Menina.
Onde
estaria ela?
Deixou
sobre a mesa o espelho e saiu “em busca das marcas da sua Ausência”, no perfume
das flores, no gosto dos frutos, no quarto vazio...
Havia,
por todos os lugares, a presença da sua Ausência.
E
naquele corpo, por tanto tempo morto dentro do espelho, o Desejo cresceu, o
rosto sorriu, as asas se abriram e o que era pesado voou...
Ressuscitou...
E
cada um deles partiu, ignorando o que o outro fazia, em busca do reencontro...
O
feitiço fora quebrado.
Estavam
apaixonados.
Voavam
leves, ao Vento, com as asas da saudade...
E
ambos traziam, no brilho dos olhos, os sinais da juventude eterna que os anos
não conseguem apagar...
Porque
os que estão apaixonados, não envelhecem jamais...
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